segunda-feira, 28 de junho de 2010

UMA FÁBULA CHATINHA - Por Caio Fernando Abreu.




Sentado à beira do caminho, o homem cansado ficou quieto, espiando a vida que passava.
Era uma vez um homem cansado que ia indo por um caminho. Tinha passado do meio-dia, a tarde estava ficando muito quente. No ar azul e claro não soprava nenhum vento, O homem procurou a sombra de uma árvore, sentou e ficou ali, quieto.
Até que passou um surfista. Ia de moto, sem camisa, a bermuda colorida, a prancha amarrada na garupa da moto. Abanou para o homem sentado, mas ele não se mexeu.
“Coitado” — pensou o homem. — “Vai indo assim todo animado. Parece que não sabe que vai morrer um dia.”
Remexeu a areia com um pedacinho de pau, mas sem prestar atenção. Então passou uma velhinha que parecia saída de um livro de histórias infantis. Usava um vestido escuro, comprido, e carregava no ombro uma dessas latas de metal, cheia de leite. Caminhava muito depressa.
“Coitada” — pensou o homem. — “Velha desse jeito, pra que tanta pressa? A morte vai chegar logo — e aí?”
Acendeu um cigarro, ficou soltando anéis de fumaça contra o céu cada vez mais azul. Aí passaram duas moças de braço dado. Parecia que recém tinham tomado banho, tão fresquinhas estavam. Os cabelos ainda molhados brilhavam ao sol. Cochichavam e riam muito, olhando o homem sentado, que nem olhava para elas.
“Coitadas” — o homem pensou. — “Tão assanhadinhas. Ah, se elas soubessem que a morte existe e pode chegar a qualquer momento...”
Ficou um rastro de perfume no ar, mas ele nem respirou mais fundo nem nada. De repente um passarinho começou a cantar, no galho bem acima dele. Ouviu um pouco, depois cuspiu de lado.
“Coitado” — o homem pensou. — “Esse idiotinha fica cantando à toa, de repente vem um moleque, joga uma pedra e pronto, acabou.”
Estendeu as pernas, mas logo as recolheu assustado. De longe, vinha um barulho forte como o de um exército em marcha. O homem fixou bem os olhos na curva da estrada. Até que apontou um elefante lá longe. Depois vieram tigres, macacos, camelos, mágicos, equilibristas: era um circo passando. Os palhaços fizeram micagens especiais para ele, mas o homem não deu atenção. A bailarina, equilibrada num pé só sobre o pônei branco, jogou uma rosa vermelha de tule a seus pés, mas ele não apanhou.
“Coitados” — pensou o homem. — “Quanta ilusão. Um dia o circo pega fogo, a morte chega e de que serviu essa alegria toda?”
Com a ponta do pé, empurrou para longe a rosa vermelha. Nesse momento, ia passando um casal de namorados. O rapaz pegou a rosa, sacudiu para afastar a poeira, depois colocou-a nos cabelos da moça. Ela sorriu, e agradeceu com um beijo. Ele respondeu com outro, ela com outro — e assim foram indo, aos beijos, até sumirem.
“Coitados” — pensou o homem. — “Amor, amor: não tem besteira maior. Casam, têm filhos, ficam velhos, doentes. Um dia morrem e pronto.”
A tarde quase já tinha virado noite, quando um vulto encapuzado veio se aproximando. Ele precisou apertar os olhos para ver melhor. Mesmo assim, não via direito a cara do vulto que se aproximava cada vez mais, até parar bem na frente dele.
— Quem é você? — o homem perguntou. A figura afastou o capuz, mostrou os dentes arreganhados e disse:
— Sou a Morte. Posso sentar ao seu lado?
O homem deu um pulo.
— Não — ele disse. — Já está ficando tarde e eu ainda tenho muito o que fazer.
Virou as costas e saiu correndo, sem olhar para trás.
O Estado de S. Paulo, 1/o4/1987

Por Caio Fernando Abreu, retirado de "Pequenas Epifãnias", página 61.

sábado, 19 de junho de 2010

O mundo está mais cego.

"O escritor português José Saramago morreu aos 87 anos em sua casa em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, última sexta-feira (18). A informação foi divulgada pela família do escritor de "Ensaio sobre a cegueira" e confirmada em seu site oficial.
O corpo do escritor, morto nesta sexta-feira (19) aos 87 anos, chegou por volta das 14h40 locais deste sábado (19) (10h40 de Brasília) à Câmara Municipal de Lisboa, onde será velado até domingo (20) no salão nobre.
O funeral está previsto para ir até a meia-noite. No domingo, a cerimônia será retomada às 9h e segue até as 11h. O público poderá entrar, mas a família pode decidir quando fechar as portas. "


Fonte: G1
http://tinyurl.com/3xzbatd

http://tinyurl.com/2a694xl

terça-feira, 15 de junho de 2010

Baú.



" —Você tem saudade, Lia?

—Não sei explicar, mas lá é como este café adocicado e quente. Minha mãe chegava a me abafar com tanto amor, preferia às vezes que me amasse menos. O velho disfarçando com carrancas, tios e tias estourando por todos os lados com os batalhões dos primos. Aconchegos, festinhas. Lembro de todos, amo todos mas não tenho vontade de voltar. Isso é saudade? Foi um período que se encerrou. Aqui começou outro e agora vai começar um terceiro período e então fico com esses dois períodos pra lembrar. Será saudade?

—Acho que sim. Quando noviça, eu pensava muito na minha gente. Sabia que não ia voltar mas continuava pensando com tanta força. Como quando se tira um vestido velho do baú, um vestido que não é para usar, só para olhar. Só para ver como ele era. Depois a gente dobra de novo e guarda mas não se cogita em jogar fora ou dar. Acho que saudade é isso. "



As meninas, de Lygia Fagundes Telles

domingo, 13 de junho de 2010

DIÁLOGO



A: Você é meu companheiro.

B: Hein?

A: Você é meu companheiro, eu disse.

B: O quê?

A: Eu disse que você é meu companheiro.

B: O que é que você quer dizer com isso?

A: Eu quero dizer que você é meu companheiro. Só isso.

B: Tem alguma coisa atrás, eu sinto.

A: Não. Não tem nada. Deixa de ser paranóico.

B: Não é disso que estou falando.

A: Você está falando do quê, então?

B: Eu estou falando disso que você falou agora.

A: Ah, sei. Que eu sou teu companheiro.

B: Não, não foi assim: que eu sou teu companheiro.

A: Você também sente?

B: O quê?

A: Que você é meu companheiro?

B: Não me confunda. Tem alguma coisa atrás, eu sei.

A: Atrás do companheiro?

B: É.

A: Não.

B: Você não sente?

A: Que você é meu companheiro? Sinto, sim. Claro que eu sinto. E você, não?

B: Não. Não é isso. Não é assim.

A: Você não quer que seja isso assim?

B: Não é que eu não queira: é que não é.

A: Não me confunda, por favor, não me confunda. No começo era claro.

B: Agora não?

A: Agora sim. Você quer?

B: O quê?

A: Ser meu companheiro.

B: Ser teu companheiro?

A: É.

B: Companheiro?

A: Sim.

B: Eu não sei. Por favor, não me confunda. No começo era claro. Tem alguma coisa atrás, você não

vê?

A: Eu vejo. Eu quero.

B: O quê?

A: Que você seja meu companheiro.

B: Hein?

A: Eu quero que você seja meu companheiro, eu disse.

B: O quê?

A: Eu disse que eu quero que você seja meu companheiro.

B: Você disse?

A: Eu disse?

B: Não. Não foi assim: eu disse.

A: O quê?

B: Você é meu companheiro.

A: Hein?

(ad infinitum)


Retirado de "Morangos Mofados", de Caio Fernando Abreu.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Por John Lennon



Em uma de minhas andanças pela internet -não me lembro se em um perfil de orkut, comunidade ou google - me deparei com um texto muito interessante de John Lennon. Sabe aquele escrito que coloca em palavras tudo o que você já sabia, mas não tinha em mente de uma maneira organizada ou, pelo menos, escrita ? Então, é mais ou menos assim que eu vejo esse texto, que, cá entre nós, não traz novidade nenhuma, mas é sempre bom para nós dar uns "toques".

"Fizeram a gente acreditar que o amor mesmo, amor pra valer, só acontece uma vez, geralmente antes dos 30 anos.
Não contaram pra nós que o amor não é acionado, nem chega com hora marcada.
Fizeram a gente acreditar que cada um de nós é a metade de uma laranja, e que a vida só ganha sentido quando encontramos a outra metade.
Não contaram que já nascemos inteiros, que ninguém em nossa vida merece carregar naos costas a responsabilidade de completar o que nos falta: a gente cresce através da gente mesmo.
Se estivermos em boa companhia, é só mais agradável.
Fizeram a gente acreditar numa formúla chamada "dois em um": duas pessoas pensando igual, agindo igual, que ra isso que funcionava.
Não nos contaram que isso tem nome: anulação.
Que só sendo indivíduos com personalidade própria é que poderemos ter uma relaçõa saudável.
Fizeram a gente acreditar que casamento é obrigatório e que desejos fora de hora devem ser reprimidos.
Fizeram a gente acreditar que os bonitos e magros são mais amados, que os que transam pouco são caretas, que os que transam muito não são confiáveis, e que sempre haverá esse chinelo velho para um pé torto.
Só não disseram que existe muito mais cabeça torta do que pé torto.
Fizeram a gente acreditar que só há uma fórmula de ser feliz, a mesma para todos, e os que escapam dela estão condenados `a margilidade.
Não nos contaram que estas fórmulas dão errado, são alienantes, e que podemos tentar outras alternativas.
Ah, tb não contaram que ninguém vai contar isso tudo pra gente, cada um vai ter que descobrir sózinho.
E ai, quando você estiver muito apaixonado por você mesmo, vai poder ser muito feliz e se apaixonar por alguém"
(John Lennon)

terça-feira, 16 de março de 2010

No dia do seu aniversário de noventa anos, um velhote resolve se deitar com nada mais nada menos que uma mocinha virgem - que exalava a pureza de nunca ter sido tocada. Uma dessas loucuras das que vem com a idade ou sei lá, mas foi isso que ele fez, ou melhor, o que não fez: o velho tem sim uma noite com a menina, mas nada de sexo. Ele se apaixona por ela, é como um amor platônico ... com muito afeto, mas tudo muito longe dá realidade. Tanto que ele prefere que a garota esteja dormindo em todos os encontros, como também nunca a acorda e pouco faz questão de saber seu nome.
A paixão dá sentido a vida do ancião. É "Delagadina" - nome que ele dá a menina - quem o inspira a partir de então a escrever verdadeiras cartas de amor nas crônicas do jornal para o qual o velho escrevia.

Não ! Isso não é uma resenha, resumo ou o que for. Eu só estava fazendo uma pequena introdução pra não ir direto ao ponto que são os fragmentos M-A-R-A-V-I-L-H-O-S-O-S que podem ser tirados do livro ! Eis aqui, entre muitos outros, os meus favoritos:

"Minha única explicação é que da mesma forma que os fatos reais são esquecidos, também alguns que nunca aconteceram podem estar na lembrança como se tivessem acontecido. (...) Eu a havia sentido tão perto durante a noite que sentia o rumor de seu respirar no quarto de dormir, e a pulsação de sua face em meu travesseiro. "

" Descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, cada assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente em ordem, mas, pelo contrário, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra a minha negligência; que pareço generoso para encobrir minha mesquinhez, que me faço passar por prudente quando na verdade sou desconfiado e sempre penso o pior, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimi-das, que só sou pontual para que ninguém saiba como pouco me importa o tempo alheio. Descobri, enfim, que o amor não é um estado da alma e sim um signo do zodíaco. Virei outro. Tratei de reler os clássicos que me mandaram ler na adolescência, e não aguentei. Mergulhei nas letras românticas que tanto repudiei quando minha mãe quis -me forçar a ler e gostar, e através delas tomei consciência de que a força invencível que impulsionou o mundo não foram os amores felizes e sim os contrariados."